Para dar uma animada por aqui, resolvi falar sobre música, e não uma qualquer: hoje trago uma canção que completa 50 anos em 2020 e que, infelizmente, ainda tem seu pezinho na atualidade (e aproveito para corrigir uma falha: como ainda não tinha Chico Buarque por aqui?).
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Apesar de você, foi composta e lançada por Chico Buarque em 1970. O Brasil já vivia uma ditadura desde 1964 (e ela duraria ainda até 1985). Ainda que a década de 70, no Brasil, tenha sido o período do “milagre econômico” foi, também, um momento de censura aos meios de comunicação e de tortura ou exílio daqueles que discordavam do governo vigente (e justamente por isso as pessoas “falavam de lado e olhavam pro chão”).
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de ter começado em 1964, a situação da ditadura brasileira se agravou em 1968, com o “famoso” AI-5, um decreto cujas determinações ficam acima das leis estabelecidas até então. Graças a esse Ato Institucional o Presidente poderia fechar o Congresso Nacional e assumir por completo as funções legislativas, isto é, tornar-se um verdadeiro ditador, como aconteceu.
Diante desse cenário nada animador, Chico Buarque achava que Apesar de você sequer passaria pela censura. Mas passou, ao menos em um primeiro momento. E por que passou? Porque, como sempre, Chico Buarque soube fazer um uso único das palavras, dizendo o que tinha a dizer, mas construindo um texto que é direto e, ao mesmo tempo, não. Digamos que o Governo demorou um tempinho para entender que o “você” da canção se referia a eles…
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Apesar de você consegue retratar bem o sentimento de muitos naquela época. Tempos sombrios, mas ainda era possível ver uma luz no final do túnel. E quando ela chegasse, a euforia seria tamanha que ninguém poderia impedir.
Se a ameça de um governo ditatorial como o das décadas de 60 e 70 ainda paira sobre nós, hoje o nosso grito também está contido por outras causas, como o vírus que tem assolado o mundo. E nós também vamos cobrar com juros o amor reprimido desse momento em não podemos nem mesmo nos abraçar.
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Gostando ou não, fica difícil não concordar que Apesar de você é uma obra e tanto (dentre tantas outras igualmente incríveis do cantor, compositor e escritor Chico Buarque). Uma música que sabe jogar muito bem com as palavras (o uso de estado e juros caem como uma luva na composição, enriquecendo seu duplo sentido).
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
A crítica é sutil, mas contundente. Chico usa dos elementos da natureza (o jardim florescendo, o dia raiando) não apenas para enriquecer suas metáforas, para para mostrar que ninguém tem um poder tão grande capaz de controlar absolutamente tudo. E que se nós fazemos parte da natureza, uma hora, podemos nos levantar novamente, agir por nossa própria força.
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frenteApesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal
Para completar, o ritmo de Apesar de você é envolvente. Ainda que tenha seu “quê” de tristeza, a música passa uma alegria que se fazia necessária naqueles tempos, e também nos dias de hoje.