Teresinha — Ana Larousse

Tem música que a gente houve e que nitidamente percebe uma história se desenrolando em forma de poesia cantada. Teresinha, de Ana Larousse, é uma dessas canções.

Toda vez que ouço esta música, é difícil não vislumbrar as imagens que são tão bem colocadas ao longo dos versos dela.

A música em questão faz parte do álbum Tudo começa aqui, lançado pela cantora em 2013 e cheio de outras músicas que carregam doçura, sentimentos e, claro, histórias.

Teresinha traz uma homenagem à vó de Ana. Com uma letra cheia de sentimentalidade e uma melodia gostosa de se ouvir, é difícil não se encantar por esta narrativa.

Acho que nas primeiras vezes em que ouvi a canção, me chamaram a atenção frases como “ela guiava colada no volante” e “e reclamava, tudo bem, do jeito dela”, pois são imagens tão comuns, mas ao mesmo tempo, tão únicas dentro da história aqui contada.

Ao mesmo tempo em que há imagens concretas, como o cabelo pintado de vermelho e o biscoito e o café para ir embora, a música também tem diversas imagens abstratas, como o velho tempo que entra e a hora de dormir em paz, que dão ares melancólicos à historia, nos fazendo entender que ela teve o seu fim.

Tudo que até aqui mencionei culmina com o final triste da música — também marcado pela diminuição do ritmo da própria melodia —, que talvez só quem já perdeu uma pessoa tão importante pode entender: a dificuldade em dizer adeus, o medo de ficar só e a capacidade de compreender que a morte também faz parte do ciclo da vida.

Deixo, abaixo, a letra completa da música, e também o vídeo, para quem quiser ouvir e se deliciar com ela.

Teresinha (Ana Larousse)

Ela pintava o cabelo de vermelho
Deixava os óculos do lado do chuveiro
Pra não cair
Deixava o velho tempo entrar
Ela guiava colada no volante
Rezava o terço pra cuidar do outro instante
Então vai
Que o tempo tá batendo atrás
E é hora de dormir em paz
Que falta você vai fazer
A casa é grande pra você
O medo te apagou, eu sei
Num carro azul 15 quilometros por hora
O mesmo biscoito e o café pra ir embora
E anoitecer
O riso que eu vi crescer
Ela esperava os filhos na janela
E reclamava, tudo bem, do jeito dela
É muito tempo eu sei
A vida cansa pra valer
Eu mesma vou adoecer
Talvez antes de ter historias pra contar
Antes de ver o amor passar
Isso deve doer
Ela fez a vida dela e de outros cinco
Se eu bem me lembro
Eu tava no colo dela
Ela guardou a minha infância no porão
Ela cuidou pra gente sempre se lembrar
Que antes era eterno
Mas tudo vai e volta só
Então vai que eu fico só a lembrar
Do tempo que era bom
Pé-de-manga, banhos de chuva
Jogar cartas, guaraná
Cor na poça d’água
Eu sei, morrer não dói
Mas ir embora nunca é fácil
Me ensina a dizer adeus
Me ensina a tricotar
Me ensina a cozinhar como você
Me ensina a não crescer só
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Aos meus heróis — Julinho Marassi e Gutemberg

Para variar, estava eu ouvindo recomendações do Spotify quando a música que hoje trago aqui começou a tocar. 

Não me lembro se algo do início dela chamou a minha atenção, mas quando percebi que havia referências a outras músicas e nomes da MPB, parei seja lá o que eu estava fazendo para ver que música era essa.

Até o momento de sentar e escrever esse post eu nunca tinha ouvido falar em Julinho Marassi e Gutemberg, a “dupla número 1 da região sul fluminense”. Você já ouviu falar deles?

A música que trago aqui foi composta em 2001 e gravada pela primeira vez em 2002, no CD Julinho Marassi & Gutemberg Ao Vivo.

Como eu disse, o que me chamou a atenção na música foram as referências. Ao menos as que entendi, já que, pesquisando um pouco, descobri que elas somam quase  trinta.

Olhando a letra toda, porém, também achei interessante o início, no qual os compositores traçam uma crítica ao excessivo uso da televisão, o gradual abandono do uso da criatividade e o consequente empobrecimento das produções artísticas

Os músicos ainda fazem uma ressalva de que a crítica não é voltada aos jovens, ainda que haja um direcionamento maior desta para o “pancadão” que, conforme a letra, não deveria ser a única opção.

Depois disso, a música se volta para o passado — mais ou menos distante —, fazendo a sua ode aos nossos artistas.

É interessante que a composição cita os nomes dos artistas, de maneira que é bem fácil encontrar os homenageados, mas também há, em diversos casos, menções a músicas ou versos, que demandam um pouco mais de conhecimento das obras desses cantores e compositores.

É o caso de “Se eu quiser falar com Gil”, que faz referência a Se eu quiser falar com Deus (essa era fácil, vai?), ou então ao fato de haver a pergunta “O que será que o nosso Chico tá escrevendo?”, nos lembrando que além de músico, Chico Buarque é também escritor. 

Quem acha estranho o verso “Aquelas rosas já não falam de Cartola” talvez não conheça As rosas não falam, assim como “Nem do Cazuza te pegando na escola”, que é uma referência ao início da música Faz parte do meu show (te pego na escola / e encho tua bola / com todo o meu amor).

Quando falam de Oswaldo Montenegro, Julinho Marassi e Gutemberg usam duas referências: a música Agonia e e Não há segredo nenhum.

Uma das melhores junções de referências, no entanto, acho que aparece mais adiante na música, quando ele junta a Casa no campo com o Dia branco e até com o Chão de giz, quase construindo uma narrativa aqui (com músicas que também são ótimas).

Apesar de ser quase um clássico, não sei se ficou clara, também, o “Quero sem lenço e sem documento, Caetano”, indicando a música Alegria, Alegria. E já que estamos aqui, eu não poderia mencionar a minha alegria em ver Oceano, do Djavan também!

Ao final da música temos, ainda, alguns pedidos dos compositores, que buscam uma música mais original, inteligente e que nos faça pensar.

Deixo, abaixo a letra completa e, ao final, a música, para que você possa ouvi-la. E, claro, não deixe de buscar os demais artistas mencionados na canção. Pelos nomes citados, você já consegue encontrar muita coisa boa.

Faz muito tempo que eu não escrevo nada

Acho que foi porque a TV ficou ligada

Me esqueci que devo achar uma saída

E usar palavras pra mudar a sua vida

Quero fazer uma canção mais delicada

Sem criticar, sem agredir, sem dar pancada

Mas não consigo concordar com esse sistema

E quero abrir sua cabeça pro meu tema

Que fique claro, a juventude não tem culpa

É o eletronic fundindo a sua cuca

Eu também gosto de dançar o pancadão

Mas é saudável te dar outra opção

Os meus heróis estão calados nessa hora

Pois já fizeram e escreveram a sua história

Devagarinho, eu vou achando meu espaço

Mas não me esqueço das riquezas do passado

Eu quero a benção de Vinícius de Morais

O Belchior cantando como nossos pais

E se eu quiser falar com o Gil sobre o Flamengo

O que será que o nosso Chico tá escrevendo?

Aquelas rosas já não falam de Cartola

Nem do Cazuza te pegando na escola

Tô com saudades de Jobim com seu piano

Do Fábio Júnior com seus 20 e poucos anos

Se o Renato teve seu tempo perdido

O rei Roberto, outra vez, o mais querido

A agonia do Oswaldo Montenegro

Ao ver que a porta já não tem mais nem segredos

Ter tido a sorte de escutar o Taiguara

E Madalena de Ivan Lins, beleza rara

Ver a morena tropicana do Alceu

Marisa Monte me dizendo: beija eu

Beija eu, beija eu, deixa que eu seja eu

Beija eu, beija eu, deixa que eu seja eu

O Zé Rodrigues, em sua casa no campo

Levou Geraldo pra cantar no dia branco

No chão de giz do Zé Ramalho, eu escrevi

Eu vi Lulu, Ben Jor, Tim Maia e Rita Lee

Pedir ao Beto um novo sol de primavera

Ver o Toquinho retocando a aquarela

Ouvir o Milton lá no clube da esquina

Cantando ao lado da rainha Elis Regina

Quero sem lenço e documento, Caetano

E o Djavan mostrando a cor do oceano

Vou caminhando e cantando com o Vandré

E a outra vida, Gonzaguinha, o que é? (O que é?)

Atenção, DJ, faça a sua parte

Não copie os outros, seja mais smart

Na rádio ou na pista, mude a sequência

Mexa com as pessoas e com a consciência

Se você não toca letra inteligente

Fica dominada, limitada a mente

Faça refletir, DJ, não se esqueça

Mexa o popozão, mas também a cabeça

A cabeça

Cabeça, DJ

A cabeça

Mais uma vez — Renato Russo

Apesar deste ser um blog majoritariamente de resenhas, um dos posts mais lidos por aqui, desde que foi postado, é o de Enquanto houver sol (Titãs).

Faz um tempo, porém, que, no mesmo estilo, sinto vontade de escrever sobre Mais uma vez, uma música que também me lembra de ter esperança, ao mesmo tempo em que me deixa pensativa.

Lançada em 1987, no álbum Sete, a música ainda é muito atual e pode despertar grande identificação.

Isso porque a letra já começa falando que os dias bons voltam, por mais difíceis ou doloridos que tenham sido os anteriores ou que venham a ser alguns futuros (“Mas é claro que o sol / Vai voltar amanhã / Mais uma vez, eu sei / Escuridão já vi pior / De endoidecer gente sã“).

Logo em seguida a letra nos faz pensar sobre quem está ao nosso redor. Nos instiga a avaliar se realmente estamos cercados de pessoas que querem o nosso bem ou se temos pessoas conosco que não vibram por e com nós (“Tem gente que está do mesmo lado que você / Mas deveria estar do lado de lá / Tem gente que machuca os outros / Tem gente que não sabe amar / Tem gente enganando a gente/ Veja a nossa vida como está”).

Mais uma vez ainda toca num ponto que, para mim, é essencial: a confiança. E passa uma mensagem que, muitas vezes, ignoramos: devemos confiar sobretudo em nós mesmos (“Se você quiser alguém em quem confiar / Confie em si mesmo / Quem acredita sempre alcança“).

Confiar em si só é possível quando você se conhece bem e sabe entender seus sentimentos, suas necessidades. Quando você consegue acreditar nos seus instintos e confiar que sabe o que é melhor para si.

Por falar nisso, essa música ainda fala sobre ouvirmos e valorizarmos os nosso sonhos, pois apenas nós mesmos podemos saber o melhor para nós. Se você tem um sonho, lute por ele, mesmo que te digam o contrário e saiba que muita gente dirá o contrário! (“Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena / Acreditar no sonho que se tem / Ou que os seus planos nunca vão dar certo / Ou que você nunca vai ser alguém“).

As pessoas têm muita facilidade em apontar dedos, criticar nossas escolhas. Mas se soubermos o que pode nos fazer bem, também poderemos escolher com quem queremos estar e quem vai realmente nos apoiar em nossas escolhas. 

Mais uma vez, portanto, é uma música realmente forte, com mensagens importantes em suas linhas e entrelinhas. Deixo abaixo a letra completa e o áudio, para quem quiser ler, ouvir e me contar o que acha dessa música.

Mas é claro que o sol

Vai voltar amanhã

Mais uma vez, eu sei

Escuridão já vi pior

De endoidecer gente sã

Espera que o sol já vem

Tem gente que está do mesmo lado que você

Mas deveria estar do lado de lá

Tem gente que machuca os outros

Tem gente que não sabe amar

Tem gente enganando a gente

Veja a nossa vida como está

Mas eu sei que um dia a gente aprende

Se você quiser alguém em quem confiar

Confie em si mesmo

Quem acredita sempre alcança

Mas é claro que o sol

Vai voltar amanhã

Mais uma vez, eu sei

Escuridão já vi pior

De endoidecer gente sã

Espera que o sol já vem

Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena

Acreditar no sonho que se tem

Ou que os seus planos nunca vão dar certo

Ou que você nunca vai ser alguém

Tem gente que machuca os outros

Tem gente que não sabe amar

Mas eu sei que um dia a gente aprende

Se você quiser alguém em quem confiar

Confie em si mesmo

Quem acredita sempre alcança

Vambora — Adriana Calcanhotto

Esses dias estava pensando que não sei quem conhece meus gostos musicais. Digo, há tempos não respondo à pergunta “qual é sua música preferida?”. Há quem saiba, sem dúvidas. Mas também há que não faça a menor ideia, creio eu. Ao mesmo tempo, também esses dias, estava trabalhando — para variar — com música em sala de aula e percebi o quão ingrata essa pergunta é. Difícil escolher a nossa música preferida, não é mesmo?

Eu não sou uma pessoa fissurada por bandas, cantores, pessoas famosas em geral (de qualquer setor, nem mesmo por autores). Admiro muito mais as pessoas que estão ao meu redor do que celebridades. Mas quando se é mais jovem, sempre tem aquelas perguntas do tipo “qual é a sua banda ou seu cantor favorito?” e, naqueles tempos, eu sempre pensava em Adriana Calcanhotto, que conheci como Adriana Partimpim. Hoje eu não sei se ela ainda seria “a minha preferida”, mas não posso negar que seu trabalho continua a mexer muito comigo. Também, pudera! Ela não faz apenas música, mas poesia musicada, e sua bagagem é notável em suas canções.

Mas não estou aqui para ficar exaltando essa artista e sim para falar de uma de suas músicas que, mesmo quando eu não entendia muito bem, adorava e que, um tempo depois, descobri que fazia referências a obras literárias que, somente anos mais tarde, eu viria a saber que existiam e que são tão óbvias nessa música. Mas vamos por partes?

Hoje eu quero falar sobre a música Vambora, lançada em 1998, no CD Marítimo. O título já chama atenção pela sua informalidade, nos trazendo uma palavra que representa um modo de se falar “vamos embora”, mas de um jeito leve, como um gostoso convite, o que combina totalmente com o ritmo dessa música.

A primeira clara menção literária da música está no verso “dentro da noite veloz”, que é o título de um livro de Ferreira Gullar. Esta obra fala da solidão, mas uma solidão diferente da experimentada pelo eu lírico da canção. Na música, sentimos que a cantora fala de amor, de uma separação, talvez, enquanto em Dentro da noite veloz (1975) Gullar fala da solidão política em tempos de ditadura.

E a segunda clara menção literária está em “na cinza das horas”, título do primeiro livro de Manuel Bandeira. A cinza das horas (1917) é uma obra que, a seu modo, também fala de solidão: a solidão de quem se percebe perto da morte, com uma doença de difícil tratamento (felizmente, Manuel Bandeira conseguiu viver mais que o esperado).

É interessante notar, porém, que quem desconhece esses títulos — como eu desconhecia nas primeiras vezes em que ouvi essa música — pode facilmente ser levado a acreditar que são apenas figuras de linguagem, que “noite veloz” e “cinza das horas” sejam metáforas para a solidão sentida. Bem, são, mas também são mais que isso, não é mesmo? Tanto é que ambas são precedidas pelo verso “dentro de um livro”.

Entre por essa porta agora
E diga que me adora
Você tem meia hora
Pra mudar a minha vida
Vem, vambora
Que o que você demora
É o que o tempo leva

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Dentro da noite veloz

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Na cinza das horas

E para quem quiser ver o clipe, deixo-o aqui embaixo. É interessante ver a melancolia nas cores, nas imagens. A solidão estampada na imagem da cantora solitária, vestida de preto, à meia luz.

Você já conhecia essa música? O que acha(va) dela?

Desenredo — Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro

Talvez os leitores da clássica literatura brasileira estranhem o título deste post, mas já adianto que nem você leu errado e nem eu fiquei maluca. Hoje vou falar sobre uma música, mas não temos como não mencionar Guimarães quando vemos um título desses, certo?

Comecemos, então, pela literatura, já que ela é, também, o assunto principal deste blog: sou daquelas leitoras que pouco leu Guimarães Rosa. Ainda estou à espera do iluminado momento em que finalmente me sentirei pronta para embarcar na leitura de Grande Sertão: Veredas. Mas já li Primeiras Estórias, um livro de contos do autor. Isso aconteceu lá em 2014, quando eu estava na faculdade e ainda me lembro, olhando os títulos das histórias, de algumas sensações que tive ao conhecê-las.

Meu primeiro contato com a escrita e a obra de Guimarães, no entanto, foi justamente através de um conto de título Desenredo, que faz parte da obra Tutaméia: Terceiras Estórias. É difícil explicar o que esta narrativa me fez/faz experimentar. Há, até hoje, uma frase dela que repercute em mim:

“Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”

Forte, não?

Tempos depois, um amigo — que sabia desse meu encantamento com as narrativas de Guimarães, em especial Desenredo — perguntou-me se eu conhecia a música de mesmo nome.

Tudo o que narrei até aqui estava esquecido em algum canto de minha memória, até que, semana passada, meu Spotify colocou para tocar Desenredo, interpretada pelo grupo Boca Livre. E foi assim que resolvi escrever aqui sobre essa música.

Pesquisando um pouco sobre ela, descobri que não há exatamente uma relação entre esta e o conto homônimo. Mas, Dori Caymmi estava lendo Guimarães quando compôs esta canção e, provavelmente influenciado pela leitura, estava relembrando os tempos em que vivera em Minas, unindo, assim, diversas imagens que podem encontrar ecos durante uma leitura da obra Rosiana.

Desenredo — a canção — foi composta em 1976, mas só foi gravada quatro anos depois, ganhando versões também nas vozes de Nana Caymmi, Edu Lobo e Roberta Sá. Ao final do post, deixarei a versão que escutei, pelo grupo Boca Livre.

O ritmo dela me traz uma sensação quase tão difícil de explicar quanto a leitura do conto mencionado, mas posso tentar definir como uma sensação de paz, tranquilidade.

É muito interessante notar, ao longo do texto da música, como a escolha do título faz sentido, havendo esse jogo entre as palavras “fio”, “enredo”, “tramas”, “novelo”, “trança”, “corda”, “enrosco”, que são termos que, pelo seu significado e usos na letra, estão diretamente ligados ao “desenredo”, ou seja, ao “ato ou efeito de desenredar; desenlace; solução”.

Também está muito presente, na música, uma certa imagem desoladora e a própria morte — sem disfarces e sem eufemismos —, figuras que igualmente encontramos nas obras de Guimarães Rosa.

Para quem quiser conferir com os próprios olhos e ouvidos, eis a letra e, logo em seguida, o vídeo da versão que mencionei:

Por toda terra que passo me espanta tudo que vejo
A morte tece seu fio de vida feita ao avesso
O olhar que prende anda solto
O olhar que solta anda preso
Mas quando eu chego eu me enredo
Nas tramas do teu desejo
O mundo todo marcado a ferro, fogo e desprezo
A vida é o fio do tempo, a morte o fim do novelo
O olhar que assusta anda morto
O olhar que avisa anda aceso
Mas quando eu chego eu me perco
Nas tranças do teu segredo
Ê Minas, ê Minas, é hora de partir, eu vou
Vou-me embora pra bem longe
A cera da vela queimando, o homem fazendo seu preço
A morte que a vida anda armando, a vida que a morte anda tendo
O olhar mais fraco anda afoito
O olhar mais forte, indefeso
Mas quando eu chego eu me enrosco
Nas cordas do seu cabelo
Ê Minas, ê Minas, é hora de partir, eu vou
Vou-me embora pra bem longe…

Versão italiana de músicas anglo-americanas

Você se lembra (caso tenha visto) dos posts que fiz sobre músicas italianas com versões brasileiras e músicas brasileiras com versões italianas? Foram posts que me diverti fazendo e, desde então, sinto vontade de também escrever sobre músicas anglo-americanas e suas versões italianas.

A ideia desse post surgiu, ainda, do fato que, por vezes, preparando aulas de italiano, deparo-me com versões de músicas (principalmente) norte-americanas. Uma das primeiras que me lembro de ter visto e que achei muito engraçada foi Sognando la California (Dik Dik, 1969), versão de California Dreamin’ (The Mamas e The Papas, 1966).

Lembrando que, geralmente, são versões, e não traduções literais. Nesse caso, por exemplo, ambas as canções fazem referências a elementos da natureza, mas na maioria dos casos são elementos diversos (fala-se de inverno na versão americana e céu cinza na versão italiana, por exemplo). Ouça-as e veja o que mais você consegue encontrar de diferente (e aproveite para se divertir com esses clipes…):

Antes de prosseguir, gostaria de comentar que é relativamente fácil encontrar versões italianas de músicas anglo-americanas (sim, porque não são apenas músicas norte-americanas que ganham suas versões, mas músicas em língua inglesa no geral). Como Tommaso Cazzorla explica neste artigo — que por si só já contém diversos exemplos do que estou trazendo aqui — a tradição de traduzir músicas estrangeiras de sucesso foi muito comum entre os anos 50 e 70, quando os italianos não estavam acostumados a ouvir (e cantar, né?) músicas em outras línguas.

Outra versão que podemos encontrar é É la pioggia che va (Rokes, 1966), derivada de Remember the rain (Bob Lind, 1966), também com diferenças entre as letras:

(Devo estar muito louca, mas o ritmo dessas músicas me lembrou o ritmo de Hey there Delilah??).

Com as suas diferenças textuais, temos, ainda, Quelli erano i giorni (Gigliola Cinquetti, 1969) e Those were the days (Mary Hopkin, 1968). Mas é interessante ver que ambas começam com a fórmula “era uma vez”:

Diferentemente das três músicas já mencionadas aqui, porém, a maioria das versões tem um título bem diferente do original. Uma que achei interessante, devido à mudança gritante, foi Sono bugiarda (Caterina Caselli, 1967) — que significa “sou mentirosa” —, versão de I’m a believer (Neil Diamond, 1967) — que significa “eu acredito”. No entanto, ambas têm uma letra parecida, falando sobre acreditar (ou não) no amor, mas jogando com esse fato de “passar a acreditar” ou “ser um mentiroso” por dizer que não acreditava:

E você não achou que os Beatles escapariam dessa, né? Existem diversas versões de músicas deles em italiano, claro. Algumas mais próximas do original que outras. Por exemplo, a versão de Let it be — que em italiano virou Dille sì — é muito mais romântica e sofrida que a original. Mas, escolhi para fechar esse post a versão de Come together (1969): Tam Tam, feita por The Rogers (1969). Textos totalmente diferentes também, nem o refrão se salva, mas dá para reconhecer de longe de onde vem a música, né?

E você, conhece mais músicas para integrar essa lista?


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Música: versões italianas de músicas brasileiras

Há um tempinho, fiz um post aqui sobre músicas italianas e suas versões brasileiras. A receptividade do post foi muito boa e uma amiga me sugeriu que eu fizesse o contrário, isto é, músicas brasileiras e suas versões italianas. Apesar de saber que, por exemplo, Chico Buarque tem diversas músicas traduzidas para o italiano, pois ele chegou a morar lá durante o período da ditadura que houve aqui (conheça os álbuns Na Itália e Per un pugno di samba), achei que essa ideia seria bem desafiadora.

Essa mesma amiga, porém, disse que há uma música do Marcelo Jeneci com uma versão italiana, coisa que eu desconhecia! A música “Felicidade” (2010) ganhou, em 2020, uma versão italiana, com a cantora Erica Mou. No caso, uma versão feita em conjunto por esses cantores:

E aí, pesquisando mais sobre o assunto, fui descobrindo algumas coisas interessantes. Por exemplo, a música brasileira chegou à Itália principalmente quando ocorreu um movimento inverso àquele que ocorrera anos antes, isto é, quando muito brasileiros migraram para lá. Outra coisa que contribuiu para o surgimento de versões italianas de músicas brasileiras foi o sucesso mundial da Bossa Nova.

Fora isso, porém, dificilmente os italianos tinham conhecimento sobre as nossas produções. Hoje, claro, a internet contribuiu para mudar esse cenário, mas ainda assim há poucas versões atuais nesse par.

Se por um lado eu já sabia que “A banda” (1966) ganhara uma versão italiana — “La banda” (1967) — por outro, eu não sabia que “Águas de março” (1972) também tinha a sua tradução (“La pioggia di marzo — 1993). La banda, porém, é bem mais próxima do original (com relação ao texto) que La pioggia di marzo:

Também descobri que a Mina (cantora de La banda, que coloquei ali em cima) tem um cd com diversas versões de músicas brasileiras, inclusive “Que maravilha” (1969), do Jorge Ben Jor, que virou “Che meraviglia” (1970), uma tradução bem próxima do original:

Você acredita que até Roberto Carlos temos em italiano? (quer dizer, não sei porque isso me surpreende, já que música romântica é a cara dos italianos, né?). “Sentado à beira do caminho” (1969) virou “L’appuntamento” (1970), música cuja letra é um pouco diferente:

Agora, surpreendentemente mesmo talvez seja saber que “Nem vem que não tem” (1967), do Wilson Simonal, virou “Sacumdì Sacumdà” (1968), também com uma letra diferente da original (exceto pelo que dá título à versão italiana):

Fora isso, também há algumas músicas infantis com suas versões, como “O caderno” (1983) que virou “Mistero” (1997) , similar à original, mas com algumas modificações:

Agora você quer ficar REALMENTE em choque? Sabia que existe uma versão italiana de “Anna Júlia” (1999)? Sim, a música dos Los Hermanos! Em italiano, também “Anna Júlia” (2001), a letra é um pouquinho diferente (mas o melhor é ouvir o refrão na versão italiana, ficou engraçado!):

Para encarrar, vamos descer um pouco o nível: não é segredo para ninguém que “Ai se eu te pego” (2011), do Michel Teló, bombou mundialmente. O que você talvez não saiba é que a música realmente ganhou uma versão italiana, que é uma tradução mesmo (assim como a versão em todas as outras línguas — e foram muitas).

Eu me lembro que foi justamente em 2012 que fui pela primeira vez para a Itália e as pessoas ainda tentavam cantar a versão em português mesmo (que tocava em tudo quanto era lugar, assim como Gustavo Lima!):

Por hoje é isso! Até que consegui mais músicas do que eu esperava e, para variar, me diverti muito fazendo esse post. Principalmente com essas duas últimas. Agora estou pensando em fazer um post de músicas norte americanas em italiano (com certeza tem várias).

Música: versão brasileira ou italiana?

Você sabia que existem músicas que têm uma versão em português e outra em italiano? Eu já comentei sobre uma delas neste post, mas hoje venho aqui para fazer um apanhado que, espero eu, vai te surpreender!

Vamos começar com algumas combinações bem fáceis (e também as primeiras que descobri): Laura Pausini e Sandy & Júnior. Sim! Você conhece Inesquecível? Ela é uma adaptação de Incancellabile, lançada em 1996, enquanto a versão brasileira é de 1997. Neste caso, é praticamente uma tradução, com as devidas adaptações para manter o ritmo e o sentido. Veja:

De Sandy & Júnior e Laura Pausini temos, ainda, Não ter, versão brasileira de Non c’è. Além disso, eles também gravaram Quando você passa, versão brasileira de Tutururu (Francesco Boccia).

Bom, essas eram fáceis. Mas, um belo dia, eu já estava na faculdade e ouvi uma música chamada La mia storia tra le dita (de 1995) e pensei “caramba, conheço essa música!”. E sim, em português, como Quem de nós dois (de 2001). As letras, aqui, já são mais diferentes, sendo mantida apenas a melodia. Aqui vai:

Ainda na faculdade, meu querido Spotify me apresentou La notte (2012), cuja relação com A noite (2014) é bem fácil de se fazer, apesar de, novamente, as letras serem bem diferentes!

Fazendo esse post, descobri, ainda, Gente di mare (1988) e a versão brasileira Felicidade (1988):

Mais recentemente, ouvi ainda È po’ che fa (1982) e a versão brasileira Bem que se quis (1989), também bem diferentes uma da outra (no quesito letra):

Agora, claro, o mais chocante de todos: sabe a música Eva (1997)? Sim, o axé! Pois é, ela também é uma versão brasileira! A música original também chama Eva (1982), e as diferenças nos textos são poucas, apenas adaptações necessárias. Por outro lado, claro, essa é a música que a melodia muda um pouco mais (afinal, virou um axé!):

Uma vez li que essa prática de fazer versões em outras línguas de algumas músicas é algo que ocorre com certa frequência (certamente você já ouviu versões brasileiras de muitas músicas que são, originalmente, em inglês) e é uma técnica antiga.

E não somos apenas nós que fazemos isso não! Nos anos 60, na Itália, era comum que se pegasse as músicas do Reino Unido ou dos Estados Unidos que estivessem fazendo muito sucesso e se fizesse uma versão italiana, a ser cantada por um cantor ou grupo muito famoso. Quer um exemplo? Veja aqui:

E você, que versões/traduções conhece? Não esquece de me contar nos comentários, eu adoro essas coisas! Recentemente, li um livro que me apresentou algumas pérola nesse sentido (incluindo mais Sandy & Júnior!).

Enquanto houver sol — Titãs

Músicas conversam conosco. E não há nada melhor que estar despretensiosamente ouvindo uma e, de repente, perceber como aquela letra tem um significado. E como ele pode mudar de acordo com a situação.

Enquanto houver sol é uma música que conheço há anos. Mas nas duas últimas vezes que a ouvi (ambas este mês) percebi que eu não podia terminar 2020 sem falar sobre ela que, agora mais do que nunca, tem tanto significado.

Lançada em 2003, pelos Titãs, no álbum Como vocês estão?, Enquanto houver sol ganha ainda mais força em um ano como este. E o próprio título já nos dá indícios, afinal ainda falta tempo para o nosso planeta deixar de ser iluminado pelo essencial astro rei e, portanto, enquanto houver sol, ainda haverá… Bom, ainda haverá vida, mas também, como dito na música, esperança, caminhos e desejos.

Mais que isso, logo na primeira estrofe há outra mensagem essencial em tempos tão sombrios: nenhuma ideia vale uma vida. Sim, nenhuma ideia (ou ideal, ou ideologia) vale uma vida. Somos todos iguais e temos os mesmos direitos. E, para além disso, o egoísmo mata. Acho que já vimos e sentimos bem isso, não?

Na segunda estrofe, o que pode parecer mera rima, também é algo que nos diz muito mais: crianças são seres cheios de esperança, porque ainda não enxergam todas as mazelas do mundo, mas também porque são capazes de usar a sua criatividade e a sua pureza sem medo algum.

Enquanto houver sol nos lembra, ainda, que não estamos sozinhos, mesmo quando parece. E também ressalta que precisamos seguir em frente. Parados não chegaremos a lugar algum. Em 2020 muitas pessoas se reinventaram, buscaram formas de sobreviver a mudanças inesperadas. Infelizmente, porém, muitas apenas se perderam em um mar de dificuldades que parece não ter fim.

Para concluir, Enquanto houver sol fala sobre o fato de que sempre há desejos dentro de nós. Mesmo nos momentos mais difíceis, lá no fundo, há algo que nos mantém aqui, algo que nos move. Às vezes, só precisamos buscar aquela voz lá no fundo de nossas mentes e corações e entender pelo que queremos lutar e seguir em frente.

Quis escrever sobre essa música, portanto, para desejar que você encontre o sol em 2021. Para lembrar que mesmo nos dias mais nublados, é possível seguir em frente e caminhar. O sol sempre volta.

E veja: coincidentemente ou não, comecei a escrever esse post em um momento cinza e chuvoso. Poucos minutos depois, porém, o sol — que eu não esperava ver tão cedo — resolveu dar as caras, iluminando e reforçando a mensagem desta canção.

Quando não houver saída
Quando não houver mais solução
Ainda há de haver saída
Nenhuma ideia vale uma vida

Quando não houver esperança
Quando não restar nem ilusão
Ainda há de haver esperança
Em cada um de nós, algo de uma criança

Enquanto houver sol
Enquanto houver sol
Ainda haverá
Enquanto houver sol
Enquanto houver sol

Quando não houver caminho
Mesmo sem amor, sem direção
A sós ninguém está sozinho
É caminhando que se faz o caminho

Quando não houver desejo
Quando não restar nem mesmo dor
Ainda há de haver desejo
Em cada um de nós, aonde Deus colocou

Enquanto houver sol
Enquanto houver sol
Ainda haverá
Enquanto houver sol

Até o fim — Chico Buarque

Por volta do ano de 2007 aprendi, pela primeira vez — e muito por acaso — o que era intertextualidade. Eu estava lendo Crescer é perigoso (Marcia Kupstas), para a escola, quando deparei-me com a palavra “gauche” que eu, desatentamente, li “guache” (sim, tipo a tinta) e, achando engraçado que um anjo dissesse para um menino “ser guache na vida” (porque a pessoa seria tinta na vida?) comentei com meus pais, que logo trataram de desfazer meu mal entendido.

Mas não só: minha mãe, como boa apreciadora de Drummond, logo me explicou que essas palavras faziam parte de um de seus poemas. E também, claro, logo me explicou o real significado de “gauche” (e não guache, por favor). E assim, “Vai Carlos, ser gauche na vida” ficou ressoando dentro de mim.

Essa passagem liga-se a outra de minha vida: desde que me conheço por gente, temos o hábito de ouvir música aos finais de semana (todos ouvirmos a mesma música, no caso). Cresci ouvindo MPB e no meio de tanta coisa, com certeza ouvi várias e várias vezes Até o fim, cantada por Chico Buarque e Ney Matogrosso.

Foi somente em 2008, porém, que descobri que esta canção também tem a sua intertextualidade com o Poema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade. E, ao descobrir isso, logo lembrei de Crescer é perigoso e tudo isso passou a ser tão especial para mim.

Mas não foi o simples fato de eu ter aprendido na prática o significado de intertextualidade que tornou tudo isso especial. Foi, sem dúvidas, o significado, principalmente da música, que por anos a fio usei como “frase de status”.

Enquanto ouvimos Até o fim podemos ver uma história se construindo diante de nossos ouvidos. A história de um garoto que cresce, mas que, não importa a idade, é sempre acompanhado pela sina decretada pelo querubim, isto é, a de ser errado.

Mas, como em tantas músicas de Chico Buarque, que viveu poucas e boas como artista brasileiro, há a esperança. A esperança de ir até o fim, mesmo sendo errado. A esperança de continuar lutando pelo não errado.

Deixo, portanto, as palavras desta canção, bem como, ao final, a música, para que vocês possam ouvir e acompanhar.

Quando nasci veio um anjo safado
O chato do querubim
E decretou que eu estava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
“inda” garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão , eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, a minha mula empacou
Mas vou até o fim
Não tem cigarro acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim ?
Eu já nem lembro “pronde” mesmo que eu vou
Mas vou até o fim
Como já disse era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu estava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim