O que é a literatura? [tradução 33]

Considerações iniciais

O texto de hoje é a tradução de um artigo originalmente publicado no The nerd writer, em 27 de fevereiro de 2020. O texto em questão foi escrito por Sara Elisa Riva e você pode lê-lo (e escutá-lo!) aqui.

Resolvi trazê-lo para cá pois, como o próprio texto diz, “o que é a literatura?” é uma pergunta que, mais cedo ou mais tarde, os amantes (e estudiosos) desta arte acabam se fazendo.

Além disso, as palavras aqui trazidas também abordam outra questão, que esteve em pauta na minha última resenha: a do cânone literário.

Vamos, então, atrás de algumas respostas?


Tradução

Depois de finalmente compreender qual era o meu papel na difusão da cultura literária, me vi diante de um primeiro obstáculo a ser superado: de onde partir para envolver as pessoas no extraordinário mundo da literatura e da escrita? Do início, obviamente, alguém poderia dizer, mas qual é exatamente o início?

Todos nós começamos a ler sem nos fazermos grandes questionamentos, simplesmente pegamos em mãos o nosso primeiro livro e, uma sílaba depois da outra, uma palavra depois da outra, uma frase depois da outra, chegamos ao final do texto. Lemos a nossa primeira história.

Entretanto — e isso inclui tudo o que lemos a seguir — dificilmente paramos para pensar porque lemos aquele livro específico. E, para compreender isso, temos de dar um passo para trás.

O que é a literatura?

Cedo ou tarde, pelo menos uma vez na vida, um estudioso de literatura se fará a uma pergunta que não temos como escapar: o que é a literatura? Questão aparentemente banal, afinal o que é a literatura se não um amontoado de textos literários?

Começo dividindo a literatura em duas grandes categorias: os grandes clássicos da literatura mundial de um lado (e esses serão os textos aos quais irei me referir ao longo desse texto) e as narrativas contemporâneas de outro. É claro que alguns livros publicados hoje, amanhã podem se tornar clássicos. Vejamos como.

Partindo de “a literatura é um conjunto de textos literários que atravessam os séculos”. Se assumirmos como verdadeira essa afirmação, será natural nos colocarmos outra pergunta: quais são os textos literários que foram transmitidos até nós? E por que justo eles?

O cânone literário

Os textos que nós lemos, que usamos como referência, fazem parte daquilo que é definido como cânone literário, ou seja, um conjunto de autores e obras tidos como modelos estéticos de uma determinada tradição e com os quais abre-se continuamente um diálogo.

Isso vale como uma definição de máxima, mas o cânone também compreende modelos que transcendem a estética. Como, por exemplo, os valores identitários de uma comunidade, os valores éticos e a sensação de pertencimento são fundamentais, uma vez que representam o primeiro sinal de identidade.

Tudo aquilo trazido até este momento clarifica, apenas em linhas gerais, um modelo de representação da realidade externa a nós. O cânone, contudo, fornece também um exemplo do universo íntimo do eu, da interioridade, do pensamento e da memória.

Para que serve, concretamente, o cânone literário?

O cânone literário nos permite, portanto, através da imitação, definir os diversos modos de representação. Em outras palavras: quando lemos os textos que pertencem ao cânone vigente, passamos a conhecer uma série de valores que se tornam nossos através da imitação (a mimese, portanto). Assim sendo, a literatura nos apresenta modelos de comportamento aceitáveis e compreendidos pela sociedade na qual vivemos, nos fazendo viver uma série de experiências capazes de formar a nossa identidade.

Isso nos faz entender que com a variação dos valores sociais no decorrer dos séculos, existe a possibilidade de uma mudança no cânone que, realmente, não é fixo e nem imutável.

Então o que é a literatura?

Depois de esclarecer, em linhas gerais, o que é um cânone literário e de nos colocarmos algumas perguntas, podemos dizer com razoável certeza que a literatura é um conjunto de textos que contém os valores e os modelos da sociedade na qual estamos inseridos, com a qual mantemos um constante diálogo aberto, mas que, no entanto, justamente pelas variáveis típicas da natureza humana, podem ser modificadas com o passar dos anos. Não é um mistério, portanto, que alguns autores ou suas obras tenham caído no esquecimento por longos períodos para depois serem redescobertos e trazidos à luz em um momento mais adequado a receber a mensagem que o autor trazia consigo. 

Resta ainda uma dúvida, a mais complexa, mas talvez a mais interessante: para o que serve a literatura?

Disso, porém, falaremos no próximo artigo!

Por enquanto, aconselhamos uma leitura fundamental: o cânone ocidental, de Harold Bloom.


Considerações finais

Ao concluir a leitura (e a tradução) de O que é a literatura não sei se as coisas ficaram mais claras ou mais confusas para mim.

A verdade é que definir literatura em poucas linhas é uma tarefa ingrata e praticamente impossível.

No entanto, o texto traz uma explicação interessante sobre o que é um cânone e como ele é estabelecido, além de trazer à luz algumas reflexões interessantes sobre a literatura.

Se você quiser a tradução do artigo sobre para que serve a literatura, me fale nos comentários (:

Algumas palavras “intraduzíveis” em outras línguas [tradução 31]

Aproveitando o barco da resenha desta semana, e com uma pequena (alta) dose de loucura, hoje eu resolvi traduzir um artigo sobre palavras italianas que não têm tradução em outras línguas. Contraditório? Talvez! Mas fique até o final para entender como isso seria possível.

Cheguei ao texto em questão através da newsletter da Treccani, a famosa enciclopédia italiana. Ele foi escrito por Eva Luna Mascolino, tendo sido publicado originalmente em novembro de 2022, no illibbraio.it.

E aí, me acompanha neste desafio?


Como traduzir uma palavra que serve de reforço, como “mica” ou a interjeição “boh”, sem recorrer a uma perífrase? E como explicar conceitos como o de “meriggiare”, de “struggimento” ou de “abbiocco” para quem não fala a nossa língua? Uma curiosa e fascinante análise de palavras que existem (quase) somente em italiano… 

Conhecida também como a língua do sim, graças à conhecida divisão dos idiomas românicos na obra de Dante Alighieri, o italiano é há séculos repleta de termos poéticos, vocabulários multifacetados e palavras tão pontuais que não podem ser facilmente explicadas para quem não conhece essa língua, ou para quem busca traduzi-la com perfeição.

Como geralmente acontece em muitos sistemas linguísticos, de fato, existem conceitos enraizados de tal forma na cultural local ou com uma história etimológica tão característica que existem (quase) apenas no nosso país: a seguir, uma análise dedicada a alguns dos exemplos mais curiosos e fascinantes disso, para refletir sobre a unicidade dos ternos que usamos cotidianamente e conhecer melhor as suas origens.

Vamos nos debruçar, então, em algumas palavras italianas “intraduzíveis” em outras línguas:

Abbiocco

Termo italiano regional, cada vez mais difundido em toda a península, abbiocco é uma palavra que deriva de galinha, ou seja, um animal que, por excelência, está em uma posição recolhida, agachada, para chocar os ovos. A partir disso, começou a indicar uma pessoa que enrosca-se em si mesma porque está muito cansada, como já podíamos ler, por exemplo, no romance Meninos da vida, de Pier Paolo Pasolini. E assim, nos dias de hoje, o intraduzível abbiocco italiano define o comportamento de quem foi vencido pelo marasmo, principalmente depois de ter consumido uma farta refeição. Em inglês só é possível traduzir com um sintagma (food coma), assim como em francês (coup de pompe o coup de barre) e em muitas outras línguas estrangeiras.

Boh

Escutamos essa palavra ser pronunciada algumas tantas vezes ao dia e, contudo, a interjeição boh que comumente exprime para nós o conceito de incerteza é tudo, menos compreensível, em outras partes do mundo. Não existem, de fato, correspondentes tão rápidos e incisivos em outros sistemas linguísticos, especialmente se levamos em conta que além de significar não sei ou não tenho ideia, o monossílabo boh também pode exprimir o ceticismo de quem fala, ou até mesma a irritação, o desconcerto, a perplexidade. Por isso, há anos, circula nas redes manuais para o uso do boh, que ajudam quem está aprendendo italiano e quer se familiarizar com as nuances e com as possíveis exceções desta curiosa palavrinha.

Magari

Continuamos no tema das interjeições e focalizamos agora na palavra magari, proveniente do grego μακάριος (makàrios, pt. feliz) e que inserido em uma exclamação é sinônimo de eu adoraria, realmente gostaria, enquanto como função adverbial pode substituir o mais frequente forse (talvez). O seu fascínio reside na dificuldade de captar todas as possíveis implicações, a partir do momento em que, com base no contexto, pode exprimir uma sensação de esperança, de felicitação, de arrependimento, ou de dúvida: esse é o motivo pelo qual em línguas como o inglês, por exemplo, podemos traduzi-lo como if only, mas também como I wish ou ainda como you wish, sem que exista, contudo, apenas um correspondente igualmente polissêmico.

Meriggiare

Meriggiare pallido e assorto / presso un rovente muro d’orto, / ascoltare tra i pruni e gli sterpi / schiocchi di merli, frusci di serpi: é assim que se abre uma poesia de Eugenio Montale, na qual o protagonista é justamente esse vocabulário áulico, mas atualmente em desuso, tão amado pelos intelectuais italianos desde Burchiello até chegar, no século passado, ao já mencionado escritor genovês e ao “poeta vate” Gabriele D’Annunzio. Trata-se, neste caso, de uma condição comportamental, que mais detalhadamente significa em repouso e na sombra das primeiras horas de uma tarde de sol. Em outras palavras, em um estado de calmaria, em contato com a natureza.

Mica

E sempre a propósito de palavras italianas “intraduzíveis” em outras línguas, talvez não todos saibam que em latim a mica equivalia a uma migalha de pão, exatamente com acontece ainda hoje em algumas zonas do norte da Itália, nas quais a michetta é um precioso tipo de pão. E como uma migalha, na atualidade, mica tornou-se um advérbio que pode ser encontrado em qualquer lugar, de perguntas a exclamações enfáticas. A sua função, de fato, é aquela de reforçar uma negação (exemplo: não sei mesmo quem é o assassino deste livro), que, consequentemente não é nem um pouco fácil de traduzir: em inglês se poderia recorrer a it’s not as if, at all, certainly e afins, mas se tratam sempre de perífrases genéricas e bem mais longas, que não correspondem totalmente ao original.

Struggimento

Vamos concluir com um substantivo de retrogosto melancólico e romântico, o struggimento, cuja etimologia está relacionada ao verbo latino destruere. Se considerarmos que antigamente a palavra significava desfazer, liquefazer ou reduzir a nada, entendemos facilmente como hoje, em italiano, esteja associada à ideia de um pensamento nostálgico e impossível de realizar, que consome pouco a pouco tanto a nossa mente quanto o nosso corpo, e que geralmente se deve a um amor atormentado. Pode parecer estranho, contudo não são muitas as línguas nas quais se pode expressar a mesma faceta da dor com um substantivo tão específico que não seja, por exemplo, um genérico heartache ou torment.


Gostou desta tradução? Não deixa de me contar nos comentários se você já conhecia alguma das palavras apresentadas aqui e como você as traduziria para o português.