Desesterro — Sheyla Smanioto

Título: Desesterro
Autora: Sheyla Smanioto
Editora: Record
Páginas: 303
Ano: 2018 (3º edição)

Ler Desesterro é, sem dúvidas, uma experiência literária. Acho que o próprio título já nos mostra que algo diferente está por vir e a capa ajuda a dar um toque final à complexidade da obra. Não à toa, a obra foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura, na categoria romance — ainda que sua linguagem seja muito mais poética que prosaica —, do Prêmio Machado de Assis (da Biblioteca Nacional), além de ter sido premiado no Jabuti e finalista do Prêmio São Paulo.

“Ler é: devorar a fome dos outros”

Logo na primeira página, não pude deixar de pensar em Vidas Secas (Graciliano Ramos), porque a autora começa a obra com a descrição de uma cidade pequena — Vilaboinha —, humilde e seca. Mas, ainda que ao longo da leitura essa semelhança ainda ecoasse em mim, também há muita coisa única neste livro.

“Até a fome da gente a terra devora, mas a terra não guarda tudo, não senhora”

O livro é dividido em partes, mas que se misturam, assim como as muitas vozes que compõem a narrativa, mas que, por vezes, parecem uma só. Nem tudo tem nome, nem mesmo os sentimentos.

“Desesterro: a única palavra que Scarlett conhecia”

Desesterro é um livro que diz e não diz. Se em alguns trechos eu pensava “será que a autora está falando disso?”, em outros, eu tinha certeza. E por disso entende-se muita coisa: miséria, violência, estupro, abandono paternal.

“Tonho tantas vezes batendo em Fátima ela nem se importa, mulher nenhuma morreu de apanhar de marido, exceto as que estão mortas”

Ainda que sejam temáticas sérias e pesadas, a leitura flui, porque as palavras escorrem em seu tom poético. E o “disse não disse” também nos ajuda a engolir duras verdades.

“Nasceu da morte dela, vê se isso é coisa de gente”

Mas há também outras temáticas na obra, como o passado que nos assombra e o ato de migrar (interna ou externamente).

“Transformação é: migração de dentro.

Sem uma linha temporal clara e com construções gramaticais bem diferentes do comum, Deseterro pode assustar alguns leitores. Mas é uma leitura que merece um esforço, talvez uma leitura em voz alta de alguns trechos (inclusive, se vocês procurarem por esse título no Google, encontrarão diversos vídeos da autora declamando alguns trechos).

“Mas filha é assim mesmo, a Fátima sabe, meu Deus, a Fátima não sabe a Fátima só imagina como é ser mãe. Mas, diacho, quem é que sabe?”

Desesterro é uma leitura para quem quer fugir do óbvio, mas também para quem consegue levar alguns socos no estômago ao virar das páginas. Por fim, uma leitura que irá surpreender a quem decidir realizá-la.

“Ele foi embora com o sol, assustado com a descoberta imprevista”

Se você se interessou, não deixe de clicar aqui (livro físico) ou aqui (ebook).

I pesci non chiudono gli occhi – Erri de Luca

Título: I pesci non chiudono gli occhi
Autor: Erri de Luca
Editora: Feltrinelli
Páginas: 115 
Ano: 2015 (5º edição)

Voltando no tempo e na memória, Erri de Luca nos conta, em I pesci non chiudono gli occhi, sobre um verão vivido aos 10 anos de idade. No livro não há capítulos, apenas um espaçamento maior entre um trecho e outro, nos dando ainda mais a sensação de uma história contínua, de uma recordação. O narrador é um garoto de 10 anos, que possui um linguajar um tanto quanto adulto, mas totalmente aceitável para aqueles que entram em contato com essa história, pois trata-se de um jovem que adora ler, fazer palavras-cruzadas e que desenvolve um pensamento crítico e filosófico desde cedo.

A narrativa se passa em uma ilha, onde o garoto está passando as férias com a mãe. Seu pai, justamente naquele ano, fora para a América (Estados Unidos) em busca de trabalho e melhores condições de vida. Sua irmã, por outro lado, estava passando as férias com os amigos.

O narrador é um menino tímido, quieto e muito inteligente, e além de passar seus dias na praia, fazendo palavras-cruzadas ou lendo, também aproveitava o mar ou ia ao encontro dos pescadores que ele tanto admirava.

“Eu era um menino viciado no isolamento”

I pesci non chiudono gli occhi (p.87)

O verão apresentado neste livro foi um verão importante para o narrador, que estava crescendo e tomando ainda mais consciência de si e do mundo ao seu redor.

“Crescer comporta uma infinidade de efeitos desconhecidos”

I pesci non chiudono gli occhi (p.90)

Por meio dos livros o jovem aprendia muito. Mas, para além das páginas lidas, é nesse mesmo verão que Erri de Luca conhece o amor verdadeiro, em carne e osso, através de uma menina que não recebe nome algum ao longo da história, pois a lembrança desse sentimento apagara qualquer outra informação da memória do autor.

“Através dos livros de meu pai, aprendi a conhecer os adultos por dentro”

I pesci non chiudono gli occhi (p.14)

A tal jovem, no entanto, era dona de uma beleza que chamava a atenção, o que começou a gerar certa inveja em três garotos um pouco maiores que o narrador. Isso leva a uma perseguição e, para o autor, ao momento marcante de seu crescimento: quando ele apanha desses três garotos.

“A descoberta da inferioridade serve para decidirmos sobre nós mesmos”

I pesci non chiudono gli occhi (p.21)

Não se trata, porém, de uma história de amor, sentimento que o autor não conhecia tão bem e tinha certa dificuldade de acreditar. Como eu disse, é um livro de memórias e a principal temática é a descoberta de si. Mas garota em questão não deixa de roubar um beijo desse menino quieto e isolado. E é então que o título do livro passa a fazer total sentido.

“Fiquei observando-a. ‘Mas você não fecha os olhos quando beija? Os peixes não fecham os olhos'”

I pesci non chiudono gli occhi (p.98)

I pesci non chiudono gli occhi é, portanto, uma belíssima narrativa sobre o autoconhecimento e, principalmente, sobre crescimento. Aos 10 anos de idade, nosso jovem narrador consegue descrever suas dúvidas e seus sentimentos de uma maneira que chega a ser poética. O livro é curto, mas cheio de vida e de lições. Vale a pena conferir com os seus próprios olhos.

“O papel quer retornar vazio, como acontecerá com a terra depois de nós”

I pesci non chiudono gli occhi (p.93)