
Confesso que a motivação para escrever este post vem de um livro que li ano passado. Ou melhor, não li, apenas iniciei. Eu dificilmente largo um livro depois de começar a ler, mas ano passado foram dois, quase ao mesmo tempo. E não sei se o problema estava realmente nos livros ou se foi também pelo fato de que iniciei a leitura um pouco antes de começar a quarentena por aqui… Mas o fato é que, num desses livros, havia uma coisa bem clara me incomodando.
Quem me acompanha por aqui provavelmente já sabe que eu sou professora de italiano. Fiz faculdade e continuo a estudar cotidianamente sobre a língua e a cultura. Um dos livros que larguei ano passado trazia um personagem italiano. Coisa, aliás, que me fez ir atrás do livro para ler.
Eu já sabia, antes de iniciar a leitura, que esse tal personagem, na história, pertencia à máfia italiana, mas isso não me pareceu um problema. Não até eu iniciar a leitura e me dar conta que, uma vez mais, eram pessoas de fora tentando retratar a “famosa máfia italiana”.
A questão é que máfia é uma coisa muito complicada. E muito séria também. Sabe aqueles políticos que nos deixam indignados porque desviam dinheiro, roubam milhões e deixam outras milhares de pessoas na miséria? Pois é, a máfia não é muito diferente disso… Matam sem dó, extorquem as pessoas…
Para além do fato de que reproduzimos erroneamente um conceito de máfia que foi exportado, principalmente, pela indústria cinematográfica, o livro em questão me incomodou porque a autora quis inserir “falas em italiano”, mas, aparentemente, sem ter conhecimento algum da língua e, consequentemente, recorrendo ao Google Tradutor. Era fácil perceber isso porque havia palavras que eu entendia como uma tradução literal ou então frases que não faziam sentido algum em italiano.
E o pior que esse não foi o primeiro livro no qual vi algo do tipo, mas no anterior, como não era o foco da história, consegui relevar mais facilmente.
A questão é que isso ficou ecoando em mim (bom, já faz mais de um ano e só agora que, finalmente, estou escrevendo esse post!). Eu não sou de criticar autores nacionais, muito pelo contrário aliás, vocês sabem que boa parte das minhas resenhas são de autores que estão iniciando ou que ainda não têm um grande público. E eu realmente não sou uma leitora chata, mesmo tendo um olhar crítico.
Mas o fato de eu relevar muita coisa não significa que eu não enxergue, por exemplo, erros de português (sim, tem dias que a revisora que habita em mim está atacada) ou coisas que, sinceramente, poderiam ser melhoradas em uma história.
A questão é que, muitos autores, seja por falta de tempo, de dinheiro ou mesmo de conhecimento, se esquecem que escrever um livro vai muito além de sentar e escrever (por mais contraditório que isso possa soar). Escrever um livro pode envolver muita pesquisa e planejamento antes da escrita em si e muito aprimoramento depois que é colocado o último ponto final do arquivo. Sim, porque depois da primeira escrita é que podemos lapidar e melhorar aquela obra, por mais cansativo que isso pareça (e é).
Nem sempre seremos nós a enxergar o que precisa ser melhorado! Por isso a importância de um leitor beta, um leitor crítico, por vezes um leitor sensível e, claro, um revisor (mas isso é coisa para depois da história já lapidada).
E aí você vira e me diz: leitor beta? Leitor crítico? Leitor sensível? O que são essas coisas? Bem, os nomes talvez já se expliquem (ao menos em partes), mas vou tentar trazer uma breve descrição de cada um desses tipos de leitor.
Leitor beta
O leitor beta é o seu primeiro leitor. Aquela(s) pessoa(a) para quem você vai mostrar seu livro antes de todo mundo, para poder ver as reações dessa(s) pessoa(s) enquanto lê(em). Pode ser um cônjuge, parente, amigo, quem for. Só tem de ser alguém em quem você confie e que também uma pessoa que tenha afinidade com o tipo de texto que você escreve (porque, se a pessoa não gosta daquilo, pode não gostar de seus escritos, o que não significaria que eles estão ruins!). E se você não conhece nenhuma pessoa que preencha esses requisitos, saiba que existem muitos leitores dispostos a ser leitor beta, mas é preciso saber encontrá-los. Alguns até podem cobrar por esse tipo de “serviço”, ainda que a leitura beta seja a mais fácil de se conseguir gratuitamente. Encontrar um leitor beta que não seja alguém do seu círculo social também pode ser bom, porque a pessoa poderá te dar uma opinião até mais sincera do que alguém que você conheça e que pode ter medo de te magoar.
Leitor crítico
O leitor crítico já está um passo além do leitor beta. Neste caso, é importante escolher alguém que tenha uma certa bagagem literária e que seja ainda mais sincero em suas opiniões (aqui já é mais difícil contar com conhecidos, pois eles acabarão tendo uma visão menos imparcial da obra). O que espera-se desse leitor é que ele leia a obra e aponte os pontos fortes e fracos, sugerindo modificações onde achar necessário (modificações essas que podem ou não ser aceitas pelo autor, que é quem dá a palavra final) e apontando o que poderia ser melhorado. Neste caso, é mais provável que você encontre pessoas que cobrem por esse serviço, afinal, ele requer dedicação e conhecimento.
Leitor sensível
Por fim, alguns tipos de obra requerem a leitura de um leitor sensível. Se você escrever sobre alguma minoria ou cultura que não é a sua, contrate um leitor sensível que tenha conhecimento sobre aquela causa. Isso vai evitar que você passe vergonha com o seu livro publicado, viu?
Vamos supor que você quer escrever sobre um personagem surdo, mas você é uma pessoa ouvinte. Por mais que você pesquise, se informe, conheça pessoas surdas, é importante contratar um surdo para fazer a leitura sensível de sua obra, pois só ele poderá dizer se a sua representação está bem feita, se você não deixou passar algo (para um ouvinte colocar um personagem surdo ouvindo algo é rapidinho, né?).
No caso de autores brasileiros que queiram escrever sobre a máfia italiana, claro, a leitura sensível já é um pouco mais complicada. Isso porque o ideal seria contratar alguém que vive (ou viveu) numa cidade dominada por esse tipo de poder, mas aí temos dois empecilhos: o fato de que “onde eu vou achar uma pessoa dessas? Eu nem falo italiano!” e o fato de que talvez as pessoas não queiram falar sobre isso, porque a vida delas poderia estar em risco (pois é!).
Para esses casos, porém, é importante buscar informações em fontes seguras e históricas, a fim de evitar apenas a reprodução de estereótipos. Além disso, você também pode contar com a leitura de pessoas que tenham mais conhecimento que você sobre aquele determinado assunto, de acordo com a formação delas (e outras bagagens culturais, porque diploma também não é tudo nessa vida, né?).
E você, já leu algum livro e sentiu que faltou uma leitura crítica e/ou sensível antes da publicação?
Teve um livro de um autor gaúcho que eu comprei somente para incentivar. Não lembro exatamente onde fiquei sabendo do livro (acho que foi no festival de Passo Fundo), mas mesmo eu sendo leigo, consegui achar várias pontas soltas e um final bem fraco e óbvio pra história. Gosto muito de ouvir as entrevistas do Eduardo Spohr sobre sua dedicação em pesquisa histórica e sua preocupação em fechar todos os núcleos de sua obra, visto que os livros dele constumam ser complexos. Talvez seja este um dos motivos dele ser um sucesso.
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Nossa, excelente. Vejo muitos autores reclamando que não são um sucesso, usando-se de um discurso vitimista. Sei que, claro, é um longo caminho até que um autor alcance o que sucesso que deseja. Mas é ainda mais longo porque o trabalho principal, isto é, a construção da narrativa, deve ser muito bem feita
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Amei esse post, Tati, super informativo. A leitura sensível é muito importante. Lembro de estudar na pós também sobre a tradução de textos sensíveis, acho que já até escrevi sobre isso no SLET. Sobre escolher para traduzir, por exemplo, um livro importante para o feminismo alguém que tenha uma identificação com a causa e faça jus ao texto. (Vou fazer um curso online de curta duração da USP sobre isso agora em abril e tô bem contente e curiosa.)
Beijo,
Brenda
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Obrigada!! E verdade, para a tradução isso é muito importante também. E muito discutido! E que demais!! Espero que você possa compartilhar um pouco sobre esse curso conosco. Estarei de olho em sua página <3
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Vixi! Por isso, decidi publicar minha dissertação de mestrado primeiro. Só não passou pelo leitor Beta, mas, passou pelo orientador, coordenador do curso e revisores (dois), a aprovação da banca e agora na publicação pelo editor.
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Hahahaha digamos que nem precisa mesmo de um leitor beta depois de tudo isso. E sendo uma dissertação, com certeza houve muita pesquisa de sua parte!
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Nem me fala. Mas, seu post ficou muito bom. Elucidativo, informativo e inovador
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Muito obrigada!! Pela leitura e pelo comentário
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Nossa, amei esse post! Não conhecia essa diferenciação de leitores, mas me fez entender também o que um amigo que me manda um esboço espera de mim ao ler o que escreveu até ali, e percebi que não estava fazendo o que ele queria haahah
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Hahahahaha eu amei essa resposta!! Fico feliz em saber disso
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Post mais que perfeito, tem autores que tem uma história maravilhosa nas mãos e não a exploram de uma maneira correta. Pecam por não aprofundar uns pontos, ou por citarem tópicos sem responsabilidade e sensibilidade. Realmente a falta de leituras expecializadas acaba ocorrendo o que aconteceu com você. Muito autor devia ler isso aqui.
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Muuuiiiito obrigada por esse comentário! Fico feliz em ver que há mais gente que pensa assim!
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Compartilhei no Facebook 😍
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Aaahh, que incrível!!! Fico ainda mais feliz 🥰🥰
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Posta mais, por favor🙏🙏😅
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hahahahaha, que amor!!! Vou postar sim!!
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Uh huul!! 🤩
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