Tatianices recomenda [19] — Musical “Os sonhos não envelhecem”

A indicação de hoje vem recheada de emoção e música.

Para quem não sabe, sou apaixonada por MPB, estilo musical que cresci ouvindo (e cantando).

No dia 09/11 perdemos repentinamente um grande nome desta área: Gal Costa.

No dia 13/11 Milton Nascimento se despedia dos palcos (mas não da música) em um enorme show no Estádio do Mineirão. O momento também foi transmitido pelo Globoplay.

Em meio a acontecimentos que, por si só, já são suficientemente grandiosos para a nossa história, pude assistir um espetáculo que, desde então, tenho recomendado a todos: Clube da Esquina — Os sonhos não envelhecem.

Se eu me arrepio só de ver as luzes se apagando e a cortina se abrindo (eu amo teatro também, esqueci de dizer isso), dessa vez a emoção foi ainda maior: após os créditos iniciais, de toda a produção do espetáculo, um “Viva Gal”, seguido de uma salva de palmas.

Pausa.

Lágrimas sendo contidas.

Então começa o espetáculo, dirigido por Dennis Carvalho. No palco, no correr das horas, acompanhamos Milton Nascimento — ou Bituca — interpretado por Tiago Barbosa, e um pouco da história do famosos Clube da Esquina.

Assistindo esse musical, aprendi coisas que eu não sabia; conheci detalhes que eu não imaginava. E também mergulhei um pouco mais na história do meu país, vendo ali o retrato de uma época não tão distante da nossa realidade atual, infelizmente.

Tudo isso ao som das maravilhosas canções de Milton Nascimento e de uma série de outros músicos que, caramba, transformaram a história da nossa música!

Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas ele caiu muitas e muitas vezes na esquina da rua Paraisópolis com a rua Divinópolis, em Belo Horizonte. Ainda bem, pois foi ali que tantas poesias viraram música. A nossa música.

Ao final, quando todos os atores e músicos — de altíssimo nível, aliás — estavam no palco, embebida pele energia das canções e atuações, compreendi a força do momento que estava tendo a oportunidade de viver.

Arrepio.

O musical Clube da Esquina — Os sonhos não envelhecem fica em cartaz, em São Paulo, até o dia 18 de dezembro, então você ainda pode conferir com os seus próprios olhos (e ouvidos) essa montagem incrível.

As apresentações acontecem às quintas, sextas e sábados, às 21 horas; domingo às 19 e sábado ainda há sessão às 16 horas também. A peça dura 2h30 e, para além disso, tem 15 minutos de intervalo.

O teatro Liberdade fica na Rua São Joaquim, 129, no Bairro da Liberdade.

O valor do ingresso (a parte mais difícil) varia de R$240 (inteira – plateia premium) a R$37,50 (meia popular — balcão) e podem ser comprados online (com a taxa de conveniência) ou na bilheteria do teatro.

Para outras informações, você pode acessar o Instagram da montagem.

E se posso te pedir um favor, conte-me aqui nos comentários qual é a sua música preferida do Milton ou do Clube da Esquina!

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Aos meus heróis — Julinho Marassi e Gutemberg

Para variar, estava eu ouvindo recomendações do Spotify quando a música que hoje trago aqui começou a tocar. 

Não me lembro se algo do início dela chamou a minha atenção, mas quando percebi que havia referências a outras músicas e nomes da MPB, parei seja lá o que eu estava fazendo para ver que música era essa.

Até o momento de sentar e escrever esse post eu nunca tinha ouvido falar em Julinho Marassi e Gutemberg, a “dupla número 1 da região sul fluminense”. Você já ouviu falar deles?

A música que trago aqui foi composta em 2001 e gravada pela primeira vez em 2002, no CD Julinho Marassi & Gutemberg Ao Vivo.

Como eu disse, o que me chamou a atenção na música foram as referências. Ao menos as que entendi, já que, pesquisando um pouco, descobri que elas somam quase  trinta.

Olhando a letra toda, porém, também achei interessante o início, no qual os compositores traçam uma crítica ao excessivo uso da televisão, o gradual abandono do uso da criatividade e o consequente empobrecimento das produções artísticas

Os músicos ainda fazem uma ressalva de que a crítica não é voltada aos jovens, ainda que haja um direcionamento maior desta para o “pancadão” que, conforme a letra, não deveria ser a única opção.

Depois disso, a música se volta para o passado — mais ou menos distante —, fazendo a sua ode aos nossos artistas.

É interessante que a composição cita os nomes dos artistas, de maneira que é bem fácil encontrar os homenageados, mas também há, em diversos casos, menções a músicas ou versos, que demandam um pouco mais de conhecimento das obras desses cantores e compositores.

É o caso de “Se eu quiser falar com Gil”, que faz referência a Se eu quiser falar com Deus (essa era fácil, vai?), ou então ao fato de haver a pergunta “O que será que o nosso Chico tá escrevendo?”, nos lembrando que além de músico, Chico Buarque é também escritor. 

Quem acha estranho o verso “Aquelas rosas já não falam de Cartola” talvez não conheça As rosas não falam, assim como “Nem do Cazuza te pegando na escola”, que é uma referência ao início da música Faz parte do meu show (te pego na escola / e encho tua bola / com todo o meu amor).

Quando falam de Oswaldo Montenegro, Julinho Marassi e Gutemberg usam duas referências: a música Agonia e e Não há segredo nenhum.

Uma das melhores junções de referências, no entanto, acho que aparece mais adiante na música, quando ele junta a Casa no campo com o Dia branco e até com o Chão de giz, quase construindo uma narrativa aqui (com músicas que também são ótimas).

Apesar de ser quase um clássico, não sei se ficou clara, também, o “Quero sem lenço e sem documento, Caetano”, indicando a música Alegria, Alegria. E já que estamos aqui, eu não poderia mencionar a minha alegria em ver Oceano, do Djavan também!

Ao final da música temos, ainda, alguns pedidos dos compositores, que buscam uma música mais original, inteligente e que nos faça pensar.

Deixo, abaixo a letra completa e, ao final, a música, para que você possa ouvi-la. E, claro, não deixe de buscar os demais artistas mencionados na canção. Pelos nomes citados, você já consegue encontrar muita coisa boa.

Faz muito tempo que eu não escrevo nada

Acho que foi porque a TV ficou ligada

Me esqueci que devo achar uma saída

E usar palavras pra mudar a sua vida

Quero fazer uma canção mais delicada

Sem criticar, sem agredir, sem dar pancada

Mas não consigo concordar com esse sistema

E quero abrir sua cabeça pro meu tema

Que fique claro, a juventude não tem culpa

É o eletronic fundindo a sua cuca

Eu também gosto de dançar o pancadão

Mas é saudável te dar outra opção

Os meus heróis estão calados nessa hora

Pois já fizeram e escreveram a sua história

Devagarinho, eu vou achando meu espaço

Mas não me esqueço das riquezas do passado

Eu quero a benção de Vinícius de Morais

O Belchior cantando como nossos pais

E se eu quiser falar com o Gil sobre o Flamengo

O que será que o nosso Chico tá escrevendo?

Aquelas rosas já não falam de Cartola

Nem do Cazuza te pegando na escola

Tô com saudades de Jobim com seu piano

Do Fábio Júnior com seus 20 e poucos anos

Se o Renato teve seu tempo perdido

O rei Roberto, outra vez, o mais querido

A agonia do Oswaldo Montenegro

Ao ver que a porta já não tem mais nem segredos

Ter tido a sorte de escutar o Taiguara

E Madalena de Ivan Lins, beleza rara

Ver a morena tropicana do Alceu

Marisa Monte me dizendo: beija eu

Beija eu, beija eu, deixa que eu seja eu

Beija eu, beija eu, deixa que eu seja eu

O Zé Rodrigues, em sua casa no campo

Levou Geraldo pra cantar no dia branco

No chão de giz do Zé Ramalho, eu escrevi

Eu vi Lulu, Ben Jor, Tim Maia e Rita Lee

Pedir ao Beto um novo sol de primavera

Ver o Toquinho retocando a aquarela

Ouvir o Milton lá no clube da esquina

Cantando ao lado da rainha Elis Regina

Quero sem lenço e documento, Caetano

E o Djavan mostrando a cor do oceano

Vou caminhando e cantando com o Vandré

E a outra vida, Gonzaguinha, o que é? (O que é?)

Atenção, DJ, faça a sua parte

Não copie os outros, seja mais smart

Na rádio ou na pista, mude a sequência

Mexa com as pessoas e com a consciência

Se você não toca letra inteligente

Fica dominada, limitada a mente

Faça refletir, DJ, não se esqueça

Mexa o popozão, mas também a cabeça

A cabeça

Cabeça, DJ

A cabeça

Desenredo — Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro

Talvez os leitores da clássica literatura brasileira estranhem o título deste post, mas já adianto que nem você leu errado e nem eu fiquei maluca. Hoje vou falar sobre uma música, mas não temos como não mencionar Guimarães quando vemos um título desses, certo?

Comecemos, então, pela literatura, já que ela é, também, o assunto principal deste blog: sou daquelas leitoras que pouco leu Guimarães Rosa. Ainda estou à espera do iluminado momento em que finalmente me sentirei pronta para embarcar na leitura de Grande Sertão: Veredas. Mas já li Primeiras Estórias, um livro de contos do autor. Isso aconteceu lá em 2014, quando eu estava na faculdade e ainda me lembro, olhando os títulos das histórias, de algumas sensações que tive ao conhecê-las.

Meu primeiro contato com a escrita e a obra de Guimarães, no entanto, foi justamente através de um conto de título Desenredo, que faz parte da obra Tutaméia: Terceiras Estórias. É difícil explicar o que esta narrativa me fez/faz experimentar. Há, até hoje, uma frase dela que repercute em mim:

“Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”

Forte, não?

Tempos depois, um amigo — que sabia desse meu encantamento com as narrativas de Guimarães, em especial Desenredo — perguntou-me se eu conhecia a música de mesmo nome.

Tudo o que narrei até aqui estava esquecido em algum canto de minha memória, até que, semana passada, meu Spotify colocou para tocar Desenredo, interpretada pelo grupo Boca Livre. E foi assim que resolvi escrever aqui sobre essa música.

Pesquisando um pouco sobre ela, descobri que não há exatamente uma relação entre esta e o conto homônimo. Mas, Dori Caymmi estava lendo Guimarães quando compôs esta canção e, provavelmente influenciado pela leitura, estava relembrando os tempos em que vivera em Minas, unindo, assim, diversas imagens que podem encontrar ecos durante uma leitura da obra Rosiana.

Desenredo — a canção — foi composta em 1976, mas só foi gravada quatro anos depois, ganhando versões também nas vozes de Nana Caymmi, Edu Lobo e Roberta Sá. Ao final do post, deixarei a versão que escutei, pelo grupo Boca Livre.

O ritmo dela me traz uma sensação quase tão difícil de explicar quanto a leitura do conto mencionado, mas posso tentar definir como uma sensação de paz, tranquilidade.

É muito interessante notar, ao longo do texto da música, como a escolha do título faz sentido, havendo esse jogo entre as palavras “fio”, “enredo”, “tramas”, “novelo”, “trança”, “corda”, “enrosco”, que são termos que, pelo seu significado e usos na letra, estão diretamente ligados ao “desenredo”, ou seja, ao “ato ou efeito de desenredar; desenlace; solução”.

Também está muito presente, na música, uma certa imagem desoladora e a própria morte — sem disfarces e sem eufemismos —, figuras que igualmente encontramos nas obras de Guimarães Rosa.

Para quem quiser conferir com os próprios olhos e ouvidos, eis a letra e, logo em seguida, o vídeo da versão que mencionei:

Por toda terra que passo me espanta tudo que vejo
A morte tece seu fio de vida feita ao avesso
O olhar que prende anda solto
O olhar que solta anda preso
Mas quando eu chego eu me enredo
Nas tramas do teu desejo
O mundo todo marcado a ferro, fogo e desprezo
A vida é o fio do tempo, a morte o fim do novelo
O olhar que assusta anda morto
O olhar que avisa anda aceso
Mas quando eu chego eu me perco
Nas tranças do teu segredo
Ê Minas, ê Minas, é hora de partir, eu vou
Vou-me embora pra bem longe
A cera da vela queimando, o homem fazendo seu preço
A morte que a vida anda armando, a vida que a morte anda tendo
O olhar mais fraco anda afoito
O olhar mais forte, indefeso
Mas quando eu chego eu me enrosco
Nas cordas do seu cabelo
Ê Minas, ê Minas, é hora de partir, eu vou
Vou-me embora pra bem longe…

Notícias do Brasil — Milton Nascimento

É de conhecimento de poucos — principalmente porque eu me recuso a cantar sozinha em qualquer circunstância — que durante anos fiz aulas de coral. E esse é apenas mais um dos motivos pelos quais conheço tantas músicas brasileiras.

Entrei em contato, desde cedo, com muita coisa boa. E claro que algumas músicas me marcaram mais que outras. Notícias do Brasil é uma delas. Uma canção animada, mas que me faz refletir, me faz querer dizer “sim, é isso!”.

Trata-se de uma canção composta por Milton Nascimento e Fernand Brant (grande dupla!) lançada em 1981, sendo parte integrante do álbum Caçador de Mim (nome de outra música muito bonita, aliás).

E o que torna essa música tão especial? Bem, basicamente tudo. A começar que, na primeira estrofe, fazemos praticamente uma viagem pelo Brasil, saindo do norte e do nordeste e chegando ao sul do país. Percorremos esse caminho como percorre uma notícia.

Mas tal notícia chega como um grito, como uma voz que quer se fazer ouvida: a voz do povo. Do povo que merece (e exige) respeito, e que, um dia, será unido. Triste pensar que se trata de uma música de 1981 e ainda não atingimos tal união… E muito menos comprovamos sermos mais “sábios que quem quer nos governar”.

Mas, na música, há outra novidade anunciada aos quatro cantos: a grandeza e a riqueza do Brasil. Um país que é muito mais que as prais lindas que tem e com gente boa vivendo em todo o seu território. É isso que a última estrofe nos apresenta e ela é tão bela e verdadeira que é inclusive repetida na canção.

Mas Notícias do Brasil não é incrível apenas por sua excelente letra, mas também pela própria musicalidade da canção. Um ritmo bem brasileiro, mas que não tira a seriedade e sobriedade do anúncio que se propõe a fazer.

Você já conhecia essa música? Deixo a letra abaixo e também um clip com ela. Espero que aproveite e não deixe de me contar o que achou!

Uma notícia está chegando lá do Maranhão
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão
Veio no vento que soprava lá no litoral
De Fortaleza, de Recife e de Natal
A boa nova foi ouvida em Belém, Manaus
João Pessoa, Teresina e Aracaju
E lá do Norte foi descendo pro Brasil Central
Chegou em Minas já bateu bem lá no Sul

Aqui vive um povo que merece mais respeito
Sabe belo é o povo como é belo todo amor
Aqui vive um povo que é mar e que é rio
E seu destino é um dia se juntar
O canto mais belo será sempre mais sincero
Sabe tudo quanto é belo será sempre de espantar
Aqui vive um povo que cultiva a qualidade
Ser mais sábio que quem o quer governar

A novidade é que o Brasil não é só litoral
É muito mais é muito mais que qualquer Zona Sul
Tem gente boa espalhada por esse Brasil
Que vai fazer desse lugar um bom país
Uma notícia está chegando lá do interior
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão
Ficar de frente para o mar de costas pro Brasil
Não vai fazer desse lugar um bom país

Apesar de você – Chico Buarque

Apesar de você — Chico Buarque

Para dar uma animada por aqui, resolvi falar sobre música, e não uma qualquer: hoje trago uma canção que completa 50 anos em 2020 e que, infelizmente, ainda tem seu pezinho na atualidade (e aproveito para corrigir uma falha: como ainda não tinha Chico Buarque por aqui?).

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu

Apesar de você,  foi composta e lançada por Chico Buarque em 1970. O Brasil já vivia uma ditadura desde 1964 (e ela duraria ainda até 1985). Ainda que a década de 70, no Brasil, tenha sido o período do “milagre econômico” foi, também, um momento de censura aos meios de comunicação e de tortura ou exílio daqueles que discordavam do governo vigente (e justamente por isso as pessoas “falavam de lado e olhavam pro chão”).

Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de ter começado em 1964, a situação da ditadura brasileira se agravou em 1968, com o “famoso” AI-5, um decreto cujas determinações ficam acima das leis estabelecidas até então. Graças a esse Ato Institucional o Presidente poderia fechar o Congresso Nacional e assumir por completo as funções legislativas, isto é, tornar-se um verdadeiro ditador, como aconteceu.

Diante desse cenário nada animador, Chico Buarque achava que Apesar de você sequer passaria pela censura. Mas passou, ao menos em um primeiro momento. E por que passou? Porque, como sempre, Chico Buarque soube fazer um uso único das palavras, dizendo o que tinha a dizer, mas construindo um texto que é direto e, ao mesmo tempo, não. Digamos que o Governo demorou um tempinho para entender que o “você” da canção se referia a eles…

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar

Apesar de você consegue retratar bem o sentimento de muitos naquela época. Tempos sombrios, mas ainda era possível ver uma luz no final do túnel. E quando ela chegasse, a euforia seria tamanha que ninguém poderia impedir.

Se a ameça de um governo ditatorial como o das décadas de 60 e 70 ainda paira sobre nós, hoje o nosso grito também está contido por outras causas, como o vírus que tem assolado o mundo. E nós também vamos cobrar com juros o amor reprimido desse momento em não podemos nem mesmo nos abraçar.

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Gostando ou não, fica difícil não concordar que Apesar de você é uma obra e tanto (dentre tantas outras igualmente incríveis do cantor, compositor e escritor Chico Buarque). Uma música que sabe jogar muito bem com as palavras (o uso de estado e juros caem como uma luva na composição, enriquecendo seu duplo sentido).

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

A crítica é sutil, mas contundente. Chico usa dos elementos da natureza (o jardim florescendo, o dia raiando) não apenas para enriquecer suas metáforas, para para mostrar que ninguém tem um poder tão grande capaz de controlar absolutamente tudo. E que se nós fazemos parte da natureza, uma hora, podemos nos levantar novamente, agir por nossa própria força.

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal

Para completar, o ritmo de Apesar de você é envolvente. Ainda que tenha seu “quê” de tristeza, a música passa uma alegria que se fazia necessária naqueles tempos, e também nos dias de hoje.

 

Rosa de Hiroshima — Vinícius de Moraes

Rosa de Hiroshima

Em minha última resenha falei de um livro que conta um pouco sobre o acidente nuclear de Chernobyl. Isso me fez pensar, também, em Rosa de Hiroshima, uma vez que, novamente, estamos falando de questões nucleares, com a infeliz diferença de que aqui não se trata de um simples acidente. Mas vamos por partes.

Rosa de Hiroshima é um poema de Vinícius de Moraes que, posteriormente, foi musicado por Gerson Conrad e ganhou vida com a banda Secos e Molhados. Trata-se de uma obra metafórica que nos faz refletir sobre as consequências de um bombardeio nuclear.

No dia 6 de agosto de 1945 — ano em que a II Guerra Mundial chegava ao fim — para demonstrar sua força nuclear, os Estados Unidos lançaram sobre Hiroshima uma bomba de urânio, que recebeu o nome de Little Boy e que matou ao menos 140 mil pessoas. Três dias depois, ainda houve o ataque a Nagasaki, com uma bomba de plutônio, apelidada de Fat Man. Mais de 40 mil pessoas morreram, sem contar as milhares de pessoas que morreram posteriormente, em decorrência dos efeitos da radiação dessas bombas.

Para as pessoas, a radiação pode causar queimaduras, cegueira, surdez e, claro, câncer. Mas, além disso, a radiação em excesso também é prejudicial para o meio ambiente, devastando a vegetação,  causando chuva ácida e contaminando tudo.

É difícil não sentir um aperto no peito lendo o poema ou, mais ainda, ouvindo a canção Rosa de Hiroshima, que ainda nos lembra que ninguém é poupado em um ataque como esse: crianças, mulheres, idosos… É ainda mais tocante ver o horror sendo descrito, metaforicamente, com o auxilio de uma imagem tão frágil e bela, mas também tão forte (uma vez que se protege com seus espinhos): a rosa. Isso sem falar que a rosa pertence à natureza, que também não é poupada em uma tragédia dessas.

E também é bonito ver como Rosa de Hiroshima consegue trazer a união entre música e poesia de maneira tão bonita, trabalhando ainda mais a fundo diversas figuras de linguagem, para além da metáfora: anáfora (com a repetição de pensem), aliteração (da rosa, da rosa de Hiroshima — a sonoridade causada por esses s) e também a sinestesia (a mistura de sensações como as rosas cálidas).

Pensem nas crianças
Mudas, Telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas, inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas, Alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh! Não se esqueçam
Da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor, sem perfume
Sem rosa, sem nada

 

Super-homem (a canção) – Gilberto Gil

Super homem

Você conhece a música Super Homem (a canção)? Trata-se de uma música lançada por Gilberto Gil, em 1979, no álbum Realce. Essa é uma daquelas músicas que eu escuto e deixo a letra ficar ecoando em minha cabeça, mas só agora resolvi realmente tentar entendê-la. E, ao fazer isso, descobri uma história interessante, contada pelo próprio Gilberto Gil!

O cantor estava de passagem pelo Rio de Janeiro, hospedado na casa de Caetano Veloso, quando este chega todo animado do cinema, contando sobre sobre o filme do Super Homem que acabara de assistir. Segundo Gilberto Gil, as descrições de Caetano eram tão boas que, quando foi se deitar, ele não conseguia deixar de visualizar mentalmente tudo o que ouvira, principalmente a cena em que o Super Homem volta o movimento de rotação da Terra para salvar sua namorada de um acidente de trem. E foi assim que nasceu Super Homem (a canção).

O ritmo da música contribuiu para que ela fique em nossa cabeça, mas não vou negar que gosto muito da letra, porque ela valoriza o feminino que há em todo ser humano, valoriza a sensibilidade e, ao mesmo tempo, a força. E claro que, conhecendo a história do Super Homem (o filme), principalmente a cena que serviu de inspiração para Gilberto Gil, fica ainda mais fácil compreender os versos finais da canção.

Um dia, vivi a ilusão
De que ser homem bastaria
Que o mundo masculino
Tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada
Minha porção mulher
Que até então se resguardara
É a porção melhor
Que trago em mim agora
É que me faz viver
Quem dera
Pudesse todo homem compreender
Oh Mãe, quem dera
Ser no verão o apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe
O Super Homem
Venha nos restituir a glória
Mudando como um Deus
O curso da história
Por causa da mulher

Ouvindo essa música eu sempre penso muito na figura materna, então fica aqui minha homenagem (um pouco atrasada) a todas as mães!

O bêbado e o equilibrista – João Bosco & Aldir Blanc

bêbado

O bêbado e o equilibrista  é mais uma música importante  na História do Brasil e também ficou famosa na voz de Elis Regina (não deixe de conferir Como nossos pais). Esta música foi lançada em 1978 e, apesar do forte teor político, nasceu do desejo de João Bosco em homenagear Charles Chaplin (explicitamente citado na figura de Carlitos), que havia morrido no Natal do ano anterior.

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

Passados 40 anos dessa música, não podemos negar que ela ainda carrega certa atualidade, presente desde sua primeira frase: “caía a tarde feito um viaduto”. Quem mora em São Paulo ou acompanha as notícias daqui sabe que muitas pontes precisam de manutenção urgente e que, recentemente, numa madrugada de novembro, um viaduto cedeu e encontra-se interditado até hoje.

Mas O bêbado e o equilibrista tornou-se hino da anistia por ter uma letra extremamente representativa.

E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil

Na canção, o “mata-borrão” é, na realidade, um “apelido” dado ao DOI-CODI, o órgão máximo da repressão que existiu durante a ditadura militar brasileira. Sua função era combater os “inimigos internos”. Era o DOI-CODI, portanto, que originava as “manchas torturadas”.

Um nacionalismo exacerbado, a ponto de fazer “irreverências mil” só era imaginável na figura de um bêbado, e a figura do chapéu-coco nos remete, novamente, a Charles Chaplin em seu personagem bêbado, Carlitos.

Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Esses são, em minha opinião, os versos mais importantes e históricos dessa música, versos em que entram verdadeiras figuras brasileiras que marcaram o período de lutas:  o “irmão do Henfil” era Betinho, ativista brasileiro que lutou pela reforma agrária e ficou muito conhecido pelo projeto “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”; as “Marias” poderiam ser tantas mulheres, aqui representadas pela mãe de Manuel Fiel Filho, torturado e morto durante a ditadura militar; o mesmo acontece com as “Clarisses”, mulheres representadas pela figura da esposa do jornalista Vladimir Herzog, também torturado e morto durante a ditadura. As lágrimas, portanto, não precisam ser explicadas.

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Se voltarmos ao título da música veremos que além do bêbado, que já apareceu algumas vezes na canção, temos também a imagem de um equilibrista. Apenas nos versos finais chegamos a essa personagem: o que se equilibra, apesar de tudo, é a esperança. Na tênue linha que existe, a esperança resiste, ainda que o futuro seja imprevisível.

Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar

Ao trazer a figura de Carlitos e do equilibrista, esta música reúne imagens do campo artístico, que é um dos primeiros a sofrer em tempos de repressão. Mas “o show de todo artista tem que continuar” e eles o fazem com maestria, mesmo diante das situações mais desfavoráveis.

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