Contar histórias salva vidas? — diário de leitura (2)

Depois da introdução existente na edição da Nova Fronteira, finalmente podemos mergulhar na história d’As mil e uma noites. E quando ouvimos falar nesta obra, logo pensamos em Sherazade contando uma história após a outra para adiar a sua morte e, consequentemente, salvar a de tantas outras mulheres, certo? Mas, evidentemente, o livro não começa por aí (e, aliás, esse momento, na minha edição, só chega lá na página 47).

Primeiro precisamos entender quando um certo rei — Shahriar — decide que a cada dia se casará com uma nova mulher que, no dia seguinte, será assassinada, evitando assim que se repita o que sua primeira esposa havia feito: traí-lo.

“Aquela desumanidade sem precedentes causou consternação geral na cidade, onde só se ouvia gritos e lamentações.

É interessante destacar esse trecho, pois é a tomada dessa decisão que faz com que todo o resto da obra exista. Porém, trata-se de uma ação cruel, fruto de um coração partido. O que nos leva a refletir sobre como um coração que sofre pode vir a tentar causar o mesmo sofrimento a outros corações. E faz isso de maneira irracional.

A reflexão acima, no entanto, me faz pensar em outra, ainda relacionada à história: um coração ferido, foi capaz de gerar muito mal à uma sociedade. E um bom coração foi capaz de encontrar uma cura para esse mal. Uma lição que aparece das mais diversas formas em tantas histórias que lemos até hoje e também algo para levarmos para a vida.

Ainda antes das histórias de Sherazade, ainda temos uma fábula contada por seu pai, no intuito de tentar dissuadi-la da ideia de se apresentar como próxima esposa do rei Shahriar. Tal história chama-se “A fábula do burro, do boi e do lavrador” e não foi suficiente para demover Sherazade de seu propósito. E é assim que, finalmente, podemos mergulhar em suas histórias.

A primeira delas é “O mercador e o gênio”, e é contada da primeira até a quarta noite, quando se inicia “A história do primeiro ancião e a da corsa”. Como se pode imaginar, essa segunda história é como uma narrativa menor dentro da primeira (que por sua vez, já é uma narrativa menor dentro da obra). E ela é acompanhada, ainda, de “A história do segundo ancião e dos dois cães negros”, contada entre às sexta e oitava noites.

Porém, nem sempre uma história é apenas uma história menor dentro de outra. Sherazade consegue encontrar outras formas de ligar uma história na outra, de modo que o rei não perca o interesse em suas narrativas e, assim, adie a sua morte. Isso acontece, por exemplo, na 8º noite quando, terminada a história do segundo ancião, mas ainda com tempo sobrando, Sherazade dá início à “História do pescador”, que passará a englobar outras narrativas, como a “História do rei grego e do médico Dubã”, que dura até a 14º noite.

Um elemento que tenho sentido muito presente nas histórias até aqui é a questão da morte. Sempre há alguém que morre ou deve morrer por algo. Mas também há algo que aparece logo nas primeiras histórias e que não deixa de ser uma das grandes molduras desta obra: o fato de que contar histórias pode nos salvar. Contar histórias salva vidas. Deixo esses pontos aqui, para ver o que acontece até o final do livro…

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4 comentários em “Contar histórias salva vidas? — diário de leitura (2)

  1. Eu adorei suas reflexões ao longo do texto e adorei mais ainda perceber que meu raciocínio foi acompanhando o seu e você questionou o que apareceu na minha cabeça: a importância de contar histórias! Eu li “Simbad, o marujo” quando tinha 12 anos e desde então tenho muita vontade de ler as outras histórias das Mil e uma noites porque a Sherazade não senta simplesmente e conta uma história, né? Ela vai destrinchando detalhes, apresentando culturas e deixando a gente instigado. Eu penso bastante em métodos de conta histórias (nunca tive coragem de estudar isso) desde que ano passado eu fui num encontro literário com a Aline Bei (autora do “O peso do pássaro morto”) e ela comenta que a mãe dela é uma boa contadora de histórias porque usa a língua oral pra isso com os famosos “mas você não sabe”, “ah, mas antes disso”, “resumindo a história” que acabam criando na gente a vontade de saber tudo com detalhes, né? E no final das contas, As mil e uma noites é isso porque a Sherazade conta tudo oralmente e é delicioso pensar nisso!

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    1. Aaah, Nati, fico tão feliz com isso!
      E você me fez pensar em outra coisa ainda: ela conta tudo isso oralmente, mas estamos lendo nas páginas de um livro. Ainda assim, essa vontade de continuar ouvindo (lendo) é muito forte. Ler cinco páginas é algo que passa rapidinho, sabe? E quando você vê, já leu 10, 15 e nem percebeu!

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